O CRESCIMENTO econômico indiano após a década de 90 incluiu o país dentre as maiores economias mundiais da atualidade. Sua indústria cinematográfica, contudo, evolui desde meados dos anos 10 e 20, quando foram lançados os primeiros filmes no gigante asiático, frutos da produção que emergia no país. Décadas depois, suas obras representam hoje fonte de grandes lucros às produtoras bollywoodianas, em sua maioria sediadas em Mumbai, além de atraírem públicos massivos e serem de grande popularidade na Ásia e em comunidades indianas presentes em mercados ocidentais como Estados Unidos e Reino Unido. Essa euforia cinematográfica, financiada pelos bilhetes de cinema de baixíssimo preço e pelas enormes proporções do contingente populacional indiano, acostumou-se a vender uma imagem fantasiosa, glamourosa e ofuscante da nação asiática. Rompendo o invólucro da fábrica de sonhos de Bollywood, onde canções em hindi e danças indianas surgem em meio a melodramas típicos dessa indústria, Danny Boyle é nomeado Melhor Diretor no Oscar 2009 com “Quem Quer Ser Um Milionário?” (Slumdog Millionaire), um retrato da Índia feito por um britânico que não segue em nenhum momento preceitos bollywoodianos e escancara o lado negro do país.
A película venceu oito estatuetas no dia 22 de fevereiro, na cerimônia de entrega do Oscar, incluindo o prêmio por Melhor Diretor, Melhor Filme e Melhor Roteiro Adaptado. A recepção da obra, entretanto, não foi a mesma no país em que foi rodado. Grande parte da crítica indiana disse ter se ofendido com a “pornografia da miséria” exibida no longa de Boyle, alegando mediocridade por parte do britânico e afirmando que somente um indiano saberia retratar fielmente em que condições a realidade do filme é verdadeira. Apesar do conto-de-fadas moderno vir com o devido final feliz, é perturbador aos indianos expor com tanta crueza as mazelas e dívidas sociais de sua nação pretensiosa a superpotência. É justamente desse senso documental e factual que se priva Bollywood, produzindo sonhos em massa para venda a varejo aos indianos.
A trama se desenvolve a partir de Jamal K. Malik (Dev Patel) e de sua trajetória para estar junto da jovem que ama, Latika (Freida Pinto), desde a infância na favela de Mumbai em que viveu até o programa de auditório “Quem Quer Ser Um Milionário?”, que vence e levanta suspeitas quanto a ter trapaceado, devido à sua origem humilde. As imagens correm na tela amplamente coloridas, seja nos barracos que Jamal percorre quando criança ou no show business em tempo real. A profusão de cores que emana da Índia de Boyle traz a singularidade cultural, a tradição milenar e as mazelas contemporâneas para um só espaço. Por meio de flashbacks que cortam as cenas do interrogatório policial de Jamal e do programa televisivo, tem-se o retrato da miséria onde cresceu o novo milionário indiano. Interessante notar a variedade de interpretações que podem provir do moderno conto-de-fadas oriental: tanto pode-se perceber no sonho realizado de Jamal uma releitura dos conceitos bollywoodianos acerca da fantasia e ilusão que alimentam o imaginário da população, quanto é possível levantar a questão da utopia vivida pelo jovem, onde a chance de emergência no país é somente efetivada por um único indivíduo em uma perspectiva polianista. Em decorrência da considerável parte dos diálogos em hindi, a identidade cultural dos atores e circunstâncias consegue ser preservada. O grande vencedor do Oscar faz um tributo à indústria cinematográfica indiana junto aos créditos finais, onde a canção Jai Ho, também ganhadora da estatueta por Melhor Canção Original, é cantanda e dançada por quase todo o elenco.
As múltiplas vitórias de “Quem Quer Ser Um Milionário?” no Oscar 2009 homenageiam Bollywood, mas por meio de seu inverso. Além disso, é mais uma mostra da tendência crescente de intercâmbio cultural entre Oriente e Ocidente. Em todos os casos, a Índia é pop.
Por Renan Trindade
Um comentário:
Como sempre, Renan, impecável a escrita do texto.
Fazendo um comentário ao filme: eu particularmente gostei muito da maneira pela qual se interagem os acontecimentos da vida de Jamal com as perguntas que lhe são feitas no programa de TV. Constrói-se uma trama envolvente ao mesmo tempo em que se evidencia diversas realidades da vida na pobreza indiana.
Talvez a crítica que vem da elite (calma, ainda não parei de ler Veja hehe) da Índia decorre do desconhecimento das mazelas sociais por parte dos grupos mais abastados. Fazendo um paralelo com o Brasil, vale a pena assistir a filmes que retratam "de maneira nua e crua" a situação em que vivem os marginalizados de nosso país. Às vezes, ou quase sempre, a realidade escapa às nossas concepções (porto-segurenses) de mundo...
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