Ele sustenta sua vida por meio de uma atividade básica: socializar. Ela mantém-se viva buscando o sentido de incluir-se na sociedade. Ele, funcionário de Relações Públicas subordinado majoritariamente a clientes que o solicitam relações nada públicas com belas atrizes em luxuosos iates. Ela, secretária de um rico empresário que admira desmedidamente mais suas curvas que suas qualificações. Ele acompanha seus fregueses em bares e drinques. Ela ainda não bebe, mas possui um vício estrondoso por chocolate. Ambos, imagens públicas. Ambos, alcoolátras em potencial.
Estrelando Jack Lemmon e a então estreante Lee Remick, ostentando 5 indicações ao Oscar - incluindo a estatueta de Melhor Canção Original, Vício Maldito (Days of Wine and Roses), 1962, trás à tona a lenta e cruel derrocada do alcoolismo na sociedade norte-americana nos anos 60. Dirigido por Blake Edwars e baseado em romance de J.P. Miller, o filme carrega fortes influências do film noir, sendo inúmeros os conflitos internos das personagens principais e a duplicidade moral das mesmas, somadas ainda às tomadas individuais com focos nítidos em rostos e a simbólica e clássica presença de cenas noturnas e sombras sobrepondo-se à face, corpo e movimento dos atores.
Joe Clay sustenta-se financeira, mental e emocionalmente bem entre goles de whisky e champagne com os fregueses de suas principais contas quando depara-se com Kirsten Arnesen. De pronto, a rispidez entre ambos surge como mais que antipática, porém logo são aproximados por suas lacunas pessoais e iniciam um romance regado a regalias, cortesias e, principalmente, álcool. Os bons momentos do casal são inexoravelmente acompanhados de garrafas. O relacionamento, portanto, germina por entre copos de cerveja e taças de vinho. Casam-se, entrementes. Joe acompanha Kirsten em uma simbiose alucinada junto à bebida, posicionando em uma delicada ribanceira a segurança de sua filha, família, lar e a estabilidade de seu emprego. O meio social releva-se presente em todos os apectos do penhasco alcoólico de ambos, seja no estopim de induzir Joe a beber para acompanhar seus clientes ou na visibilidade pútrida que adquirem ambos diante dos olhos imperdoáveis da sociedade. Os drinques tornam-se elemento mais do que crucial para a sustentabilidade dos pilares do casamento - todos eles acimentados e erguidos a incontáveis goles. Todos os enfrentamentos e dificuldades passam a indicar cegamente o caminho turvo alcoólatra. Kirsten, antes fornida de valores castos e bem fundamentados, perde-se em turbilhões de depravação e alcança dejetos abaixo da concepção do espectador - e inclusive, de Joe. Aparentemente em busca de preenchimento para o vácuo trivial de sua existência, a secretária preenche o vazio de sua vida com litros intermináveis da droga. A cada gole dado por Lee Remick sentimos um fragmento da sanidade de Kirsten perdendo-se. Já Joe, que mostra-se no início da película como homem de princípios fortemente estabelecidos, negando-se a trabalhar com clientes baixos a ponto de usarem de artifícios ardilosos para saciar suas sedes eróticas e ególatras, perde a sensatez completamente. Devida atenção deve ser dada ao fervor das súplicas de Clay ao bradar a necessidade de beber durante a cena em que se descontrola na estufa de seu sogro. Estupenda e desesperadoramente fascinante a interpretação de Jack Lemmon, somando devassidão, loucura, amor e vício em um só montante de triste e débil esbórnia. A miséria mental de Joe e Kirsten tortura a trajetória de seu romance, levando o enredo a um desfecho nada menos que fatidicamente sublime, destrinchando a distância entre os universos da sobriedade e da insanidade viciosa, ainda que permeados pelo amor e pela ternura. "Magic times", diria Joe em seus momentos ébrios.
Por Renan Trindade
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