quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Xeque-mate

Faleceram, curiosamente no mesmo dia do ano de 2007, dois mestres cinematográficos responsáveis por grandes revoluções no universo da sétima arte: o italiano Michelangelo Antonioni e o sueco Ingmar Bergman. Ambos deixaram legados eternos para o deleite de cinéfilos em luto ao redor do mundo. Contudo, suas tendências diferem quanto à força motriz de seus pensamentos: Antonioni se descrevia como um diretor de cunho Marxista, retratando aspectos da riqueza, do luxo e da alienação; Bergman, responsável pelo debate existencialista no cinema, se ocupava com temas tais como Deus, a Vida, o Amor e, exepcionalmente, a Morte.

Nascido na cidade de Uppsala, na Suécia, filho de um pastor luterano, Ingmar Bergman teve sua infância permeada por rígidos castigos corporais e psicológicos. Iniciou sua carreia no teatro, levando consigo para o cinema influências desse meio. Dentre os 62 títulos que presenteou às telas, O Sétimo Selo (1957) foi o estopim para sua fama internacional e consagração no panteão de diretores aclamados na história cinematográfica. A obra vencedora do Prêmio Especial do Júri do Festival de Cannes resgata profundas questões filosóficas ligadas à existência de Deus, ao papel da religião e do Catolicismo, em si, e ao paradoxo da Morte, que oferece à humanidade tantas certezas quanto indagações. O Sétimo Selo, lembrado pelos belíssimos e célebres planos bem estudados, representa uma contra-corrente para o cinema feito na década de 50, deixando de utilizar a fotografia Technicolor e figurinos suntuosos para emergir preto e branco, com tomadas de vastas planícies vazias e áridas, fazendo uso de um figurino para-realista - adequado ao contexto histórico da trama, porém atado ao estilismo do diretor e da obra. O enredo, vindo originalmente do teatro, carrega traços característicos dos palcos: diálogos diretos, objetivos e claros, expondo nitidamente a intenção de cada cena.

A trama se desenvolve ao redor de um fato não menos adequado para o trato de indagações existenciais, posicionando o protagonista em um turbilhão de incertezas que envolvem o espectador em sua agonia e desespero. Eis que, em período medieval, Antonius Block (Max von Sydow) retorna de uma jornada de muitos anos como cavaleiro nas Cruzadas. Acompanhado de seu escudeiro ateu Jof (Nils Poppe), Block encontra sua vila devastada pela fome, peste, guerra e morte - não por acaso, os males trazidos pelos Quatro Cavaleiros do Apocalipse na religião cristã. Sua mente aflora dúvidas insaciáveis quanto à existência de Deus e o real sentido da vida. Não lhe é razoável que uma divindade pregadora de Amor e Vida mate seus fiéis como forma de penitência. Seu encontro com a Morte (Bengt Ekerot) durante um maciço dia em uma praia pedregulhosa o faz ressaltar ainda mais seus questionamentos. Antonius propõe, com o objetivo de ganhar tempo para encontrar o significado de sua existência, um jogo de xadrez com o emissário mortal. À medida que o jogo não houver terminado, Block pode permanecer entre os homens. Caso perca, a Morte tem como trato levá-lo, bem como os acompanhantes que encontra ao longo de sua peregrinação pelo país. Caso vença, poderá viver sem ser atormentado pela possibilidade de encarar seu mais trépido temor. A partida é jogada em partes, sendo que durante os intervalos entre um encontro com a Morte e outro, Block percorre o país se deparando com figuras diversas: um ferreiro, sua esposa que se vende aos prazeres mundanos, um casal de artistas e seu bebê. A figura da Morte é onipresente na obra, seja na forma física ou inserida no simbolismo perene do filme. Também é incisiva sua influência e participação no cotidiano e pensamento de toda a humanidade retratada por Bergman. O medo se alastra como uma insanidade generalizada, enlouquecendo a todos desenfreadamente no delírio pestilento medieval. Assim como a Morte, a religião também se encontra em todos os aspectos do enredo. Vista como fruto do pavor em massa, potencializada pela pregação de pastores que culpam o povo mundano pela vinda da doença, a religião figura como maior provocação em O Sétimo Selo. Ingmar Bergman questiona, pela voz de Antonius Block, se a existência divina proviria de uma verdade ou de uma necessidade humana. Denso, o filme mostra a contradição do Cristianismo medieval em estimular o sofrimento por meio de penalidades para alcançar a felicidade, em tempos pestilentos e desgraçados. Assim, são mostradas, em diversos locais e pontos da trama, imagens em madeira em que o rosto de Cristo na cruz se encontra deformado e angustiado, assim como as sofríveis faces dos moribundos no filme, contrastando por meio da humanização a figura do Messias. Entre todos os geniais planos e montagens do mestre sueco, duas passagens apontam cruamente a essência de O Sétimo Selo. Primeiramente, a peregrinação dos flagelantes, que creêm que a peste viera em forma de castigo pelos seus pecados e portanto promoviam o auto-flagelo violentamente, fazendo seus berros agonizantes soarem ao longe. A cena se destaca pela crueza do horror, estampado nos rostos dos que assistem aos pestilentos passarem pela vila, contrastado com a alegria dos artistas que apresentavam momentos antes da chegada do grupo em farrapos e potencializado pela música que acompanha o passo dos fiéis. Também chocante é a passagem em que a morte de um camponês pestilento é filmada inescrupulosamente em uma floresta, expondo claramente a efemeridade, fragilidade e incapacidade da vida humana. O cadáver desfalece no canto da tela, deixando todo o restante do plano abarcando as escuras árvores e folhagens ainda por alguns segundos após o falecimento da personagem, aveludado por um amargo silêncio. Finalmente, finaliza-se com devida excelência para o desenvolvimento crescente do enredo, permitindo ao espectador absorver a imensidão de provocações apresentadas e, como pode ser percebido pela análise das personagens que encerram a trama, homenageando a Arte. Nietzsche aplaudiria em pé.

Por Renan Trindade

Um comentário:

Anônimo disse...

Cara, vai se ferrar.
Por que voce escreve? isso é uma tremenda covardia.
sério, adorei esse texto.
simplesmente SUA cara.
beijinho e l.d.z.v.
Maja